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27/07/19 07:00 - Opini�o

Beijava... e como beijava!

Roberto Magalh�es

Notícia quente explode feito bomba em rastilho de pólvora. Incendeia ouvidos e almas, tais são as labaredas que provoca. "A Martinha tá namorando um poeta!" A escola tremeu. Professores, amigas e inimigas, o dono da cantina, os serventes, os inspetores, o sorveteiro e o pipoqueiro da saída, não houve quem não embasbacasse com a explosiva novidade. "Isso mesmo, amiga, a Martinha - tinha que ser ela - tá pegando o moleque poeta!"

O estopim do incêndio foi um comentário do professor Arruda. Ele mesmo, o odiado professor de redação, que exigia texto semanal, dissertação, crônica, poesia... Não importava, tudo virava esculhambação geral. O sádico professor lia em voz alta as besteiras dos alunos, depois os humilhava, chamando-os para que fossem pegar a "obra" lá na mesa dele. Era o caminho do inferno. Doía voltar cabisbaixo, tendo na mão o texto ridicularizado e carimbado com nota vergonhosamente vermelha. Ninguém, até então, tinha conseguido mais do que 5, 27 com o Arruda. Verdade ou vingança, os alunos não perderam tempo, partiram para a desforra. Esparramaram para Deus e para a escola inteira que a mulher do Arruda não era flor que apenas se cheirasse, comia-se também. Molecagem!

Por economia narrativa, voltemos ao professor Arruda. Foi numa sexta-feira 13, que ele, emocionado, surpreendeu: "Estou realizado, valeu ter sofrido todo esse tempo com textos ridículos, pensei que morreria sem desfrutar dessa oportunidade. Tenho, em minhas mãos, poesia elogiável, à qual atribuí nota dez com louvor. Vaticino, portanto, com o peso de longa experiência literária, que o jovem autor será, em tempo breve, mais um luminoso bardo nacional! Convido o aluno Alfredo Raimundo para vir receber os meus efusivos cumprimentos." Os alunos entraram em parafuso, não acreditavam no que viam e ouviam, um colapso mudo idiotizou a classe.

Alfredo, aluno novo na escola, viera de outra cidade sem despertar mínima atenção. Espigado, magro demais, um varetão. E pior, a cara apinhada de espinhas purulentas. Nenhum motivo tinham as meninas para percebê-lo. Menos ainda, os moleques, que só tinham olhos para a bola na pelada do recreio. Nenhuma chance de perceberem o menino esquisito sempre lendo, num dos bancos da escola. Tudo mudou depois da cena do professor Arruda. Agora, o jovem poeta era a estrela da escola. Todos queriam conhecê-lo. Brilhava tão intensamente que nenhuma réstia de luz sobrou para o resto dos moleques, que passaram a odiá-lo. A esperta Martinha logo percebeu que o menino poderia ser cobiçado troféu. Antes que outra garota o roubasse, passou um batonzinho e foi barrar o menino na saída das aulas. "Poeta, quero namorar você." E, segura da sua sensualidade juvenil, arrematou: "É dizer sim ou não." O poeta tremeu, ruborizou-se, gaguejou, mas os esfomeados hormônios da idade exigiram que ele dissesse sim. Com uma curiosidade insuportavelmente coçante, as meninas queriam saber tudo. Martinha foi para o centro da roda. Afinal, ninguém tinha a mínima ideia do que era namorar um poeta. A experiência que tinham era com os moleques da escola, nenhuma delicadeza, respeito menos ainda, já chegavam metendo a mão, avançando o sinal. Martinha tirava daquele momento todo o gozo possível.

Disse, então, que estava vivendo uma experiência maravilhosa, que Alfredo era um menino doce, que suas mãos eram respeitosas, que dele ouvia frases lindas, coisa de quem domina a linguagem da poesia, que é a linguagem do amor. Beijava? Sim e como beijava! Mas não era afoito. Primeiro cuidava de criar um clima tão romântico, que aquele beijo de arrepiar corpo e alma era consequência inevitável. Quanta inveja Martinha colhia dos olhos das meninas. Desfrutou desse reinado por uma semana, depois, sentindo-se saciada, mandou o poeta pastar.

A verdade era bem outra. O menino era um saco! Só falava de sonetos, métrica e metáforas; não parava de declamar, era um poema atrás do outro. Ela, até tentava mudar a chatice da literatura, ia pra cima, mas ele se afastava. Beijar que é bom, nada. Estava enfarada de poesia.

Agora, ria muito só de pensar na corrida das meninas tentando pegar o poeta descartado. Imaginava o tamanho da decepção! Mil vezes a molecada sem poesia, mas com pegada forte. Que o menino poeta fosse namorar o chifrudo do professor Arrudão! gargalhou.

Almas gêmeas, eles se entenderiam. Tô fora!

O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e ficcionais.





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