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16/07/19 07:00 - Opini�o

Agasalho com mem�rias

Alexandre Benegas

Eram dois velhos velhinhos bem sozinhos no mundo. Perderam os dentes, os filhos. Ir à missa era sagrado. Lá, louvavam serenidade e benfazejos na disponibilidade acolhedora de verbos fáceis. Em casa, disputavam campeonatos de irritação. Na convivência diária, entre um pedido e outro, concorriam a ofensas, pela inabilidade da conversação. Desdentadamente brigavam tanto quanto se amavam. Às vezes, metendo os dedos em seus cabelos secos e cheios de caspa, ele escondia os insultos, os reclamos dela na surdez dilatada, nos silêncios prolongados. No cansaço desgrenhado e morno dos fins de tarde, ficavam à varanda, detidos pela ir e vir de pessoas. A mão de um, num gesto côncavo, recepcionava a mão do outro. Aneladas pela devoção, as mãos buscavam repouso sobre o vestido verde e opaco, velho atestado de sua maternidade. Hora da Ave-Maria. Os olhos represavam sempre. Entre uma lágrima e outra, o passado presente com requisições de gratuita saudade.

Tinham como diversão o rádio que a padaria da frente habituava ligar. Ele, de debilitada audição, tentava ouvir algo para contar para ela. Permutavam a interpretação em voz alta até compreenderem por completo o assunto. Isso até o dia em que se ouviu sobre a existência de uma Casa de Amparo para homens. Ela, sem se hesitar, incentiva o marido a ir e ficar por lá. Ele, intrigado: "De que valeria uma casa de amparo para homens?" A esposa: "Alguém de nós estaria pelo menos acompanhado. Não viveria sozinho." Inconformado, ele ri um riso triste e a olha com a responsabilidade de um juiz. Moacyr Scliar, com singular emoção, falava do amor buscando morada em abrigos e albergues.

"A Casa de Amparo, minha velha, é para homens esquecidos pela mulher!! Você ainda não desistiu de mim! Até poderia ter feito isso. Desde que nos conhecemos, trovejei críticas a respeito de sua família. O seu culote é geometricamente desproporcional. Você boceja tal qual uma leoa enfastiada. Ronca. É sonâmbula. Desemparelha minhas meias. E o pior, na maioria das vezes você fala com a bile e pensa com o intestino. Sua rinite é asquerosa. Seus irmãos - malditos!-verdadeiras oferendas rejeitadas pelo mar. Suas piadas, a desgraça da sem graça" ... Num silêncio cemiterial, ela ri.

"Abandoná-lo no altar seria tão inútil quanto o que você é. No máximo, eu o faria esperar. Esperar muito. Negligenciaria seus aniversários. Despacharia suas alegrias atrasadas. Subestimaria suas conquistas. Fingiria interesse intelectual nas suas conversas acerca da Academia de Letras. Teatralizaria orgasmos, por meu corpo não mais se confirmar ao seu. E se um assistente social me perguntasse do porquê de eu ter feito tudo isso, diria-lhe que igualmente a uma casa de repouso, durante muito tempo fui casa. Imóvel, restringi minhas expectativas, meus anseios em um perímetro palmilhado por uma convenção social denominada casamento. E mais, durante longa história, fui repouso. Enquanto você, um dador de aulas de Língua Portuguesa trabalhava, eu estacionava minha formação acadêmica em prol dos nossos filhos. Fiquei em repouso ao abdicar de estágios, que poderiam me projetar profissionalmente. Permaneci em repouso quando, para auxiliá-lo nas economias mensais, lavava, passava, cozinhava e sorria para você."

Pasmado, ele questiona a esposa do desabafo amaríssimo. Ela, com precauções de ladrão, confirma e acrescenta-lhe sua mágoa em superlativos. Atônito, detido pela tensão, ele busca o silêncio reparador. Nesse momento, ela, emocionada, convoca as mãos dele a pousarem sobre as suas. Emudecidos, eles choram. Talvez estivessem pensando a mesma coisa. Um dia, alguém criaria uma casa de amparo para velhos abandonados pela vida. E nessa casa, passariam conversariam, ririam, ouviriam quanto tempo vivemos sem saber viver.

O autor é membro da Academia Bauruense de Letras e autor de diversos artigos sobre Língua Portuguesa.





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