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13/07/19 07:00 - Opini�o

Para frente e para tr�s

Roberto Magalh�es

A cadeira de palhinha trançada balançava o corpo franzino da Biloia. Para frente e para trás, todos os dias, minutos, horas, sempre. Tinha a velhinha miúda o que fazer? Absolutamente nada. Tudo desaparecera de repente no sopro do vento. Vivia sem saber por que, confusa e triste.

Na televisão, as imagens que não via; nas revistas, as notícias que não lia... Então balançava... Para frente e para trás. Do ontem balançava muito; do hoje, muito pouco; do amanhã, nada.

No vestido preto bem passado, um camafeu de marfim fechava-lhe a gola sem esconder a flacidez do pescoço vincado de rugas. Tinha os cabelos bem penteados compondo um coque alto. Na face, um pozinho rouge disfarçava a palidez. Mãos profissionais cuidavam-lhe da aparência.

Era dia de visita numa dessas chamadas casas de repouso. Precisava estar arrumada, perfumada, enfim em perfeita ordem. Biloia resmungava, chatice aquela arrumação toda que as moças lhe impunham. Pra que embelezar corpo sem vaidade? Queria se livrar de tudo, queria balançar.

Para a frente e para trás... Ia e vinha, dormitando imagens de um passado longínquo. Salões iluminados, violinos rodopiando casais, homens lindos em fraques perfeitos, camisas plissadas, gravatas borboletas, sapatos de verniz. Que mundo lindo fora o seu!

Era um tempo de valsa, galanteios não lhe faltavam, moça bonita que fora. E aquele beijo furtivo? Ela ainda o mantinha vivo nos lábios. Teria ele realmente acontecido? Confusa, não mais separava a realidade do sonho.

O filho, a nora, os netos, o presentinho, o bolo, o abraço, o beijo, o dia de visita. Falavam, perguntavam, riam, as crianças, um inferno, mexiam em tudo, pulavam sobre a cama gritando, nenhum carinho de neto. Ela pouco entendia o que diziam, mas se esforçava, respondia com monossílabos e ria, fingindo, sem saber do quê.

Não demorava, começava a se estressar, muita agitação no quartinho. Como lhe era difícil ser protagonista daquele enredo quinzenal... Que fossem todos embora, que não enchessem mais. Saco! Que sumissem, precisava voltar ao baile iluminado, queria valsear, rodopiar, quem sabe um novo beijo? Precisava balançar. Para frente e para trás...

Biloia sabia que da vida não tinha mais o que desejar, não era ninguém, apenas um estorvo, antevia o ponto final cada vez mais perto, a frase acabando. No finzinho, é assim - ela pensava - a vida tira tudo da gente, deixa só uma cadeira de balanço. Então balançava. Para a frente e para trás.

Queria ouvir a orquestra, queria sonhar, rever imagens possíveis de uma vida inteira. Tinha tido sim uma vida longa, repleta de aventuras, de alegrias, amores, sonhos, muitos amigos, família grande, marido amado, filho... Agora era isso só, uma vidinha, tão pequena que cabia inteirinha numa cadeira de balanço. Para a frente e para trás, para a frente e para trás, para a frente e para trás, para a frente.

O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e ficcionais. [email protected]





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