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18/05/19 07:00 - Opini�o

Santo Ato

Roberto Magalh�es

Viviam no reto caminho de Deus. Casados havia cinco anos, eram pobres sim, dinheiro contado, vida apertada. Não importava, eram almas em salvação. Mas passavam por um momento difícil. Queriam frutificar, como manda o livro santo. Queriam o primeiro filho. A natureza, contudo, negava-se a cumprir o que dela o casal esperava. Três anos de tentativas e nada. O compadre Laércio, amigo da casa, ponderou-lhes que não desanimassem, procurassem médico, fizessem exames, tratamento.

Azoospermia. O resultado não poderia ser pior. Ausência total de espermatozoides. Nenhuma chance de fruto. José e Maria choraram abraçados, mas não se rebelaram, o Senhor sempre sabe o que faz. O compadre, inconformado, cutucou de novo. Sugeriu fertilização in vitro. Isso mesmo, um bebê de proveta. Um bebê do quê? De gaveta? De vidro? Tinham ouvido bem? Com muita paciência, o compadre explicou que era coisa de laboratório, sem sexo e sem gravidez. Então é coisa do diabo, disse José, assustado. Maria se benzeu, cruz credo! Jamais teriam um filho dentro de um vidro. O compadre estava delirando.

Naquela noite, uma surpresa: o irmão Varte Oreia telefonou. O apelido "oreia" homenageava as enormes orelhas de abano do irmão. Nervoso, o Varte foi logo dizendo que estava preocupado, tinha tido um pesadelo terrível. O irmão José e a cunhada perdidos num deserto, sem água, sem pão, sem ter a quem pedir salvação. Estava tudo bem? Tinha acontecido alguma coisa? Visitaria o irmão em uma semana.

Muito esquisito. O Oreia nunca telefonava, vivia entocado numa fazenda no fundão do Pará. No dia seguinte, José foi para varanda, balançar a fumaça do cigarrinho de palha na rede. Era assim que arrumava a cabeça quando ela malucava. Um clarão iluminou tudo. O Oreia poderia ser a salvação. Isso mesmo, o irmão era homem bom, religioso e do mesmo sangue... Bem que a Maria e o Oreia poderiam, com a bênção do Pai, plantar juntos a sementinha do filho desejado. Depois, achou a ideia coisa do capeta. Ceder a mulher ao irmão? Melhor parar por aí.

A ideia absurda, contudo, grudou nele. No outro dia, foi de novo para a rede, acendeu a palhinha, pediu ao Pai uma luz, estava ficando louco. Novo clarão. Se o Oreia se deitasse com a Maria, o bebê não seria de vidro, mas de verdade, assim como Deus quer. Ao saber da ideia, Maria xingou, nauseou, chorou. Deitar com o próprio cunhado, o marido estava birolando. Mas a possibilidade do filho desejado mexeu com ela.

Uma felicidade a chegada do Varte Oreia. Tanto tempo! Saudades! Abraçaram-se, riram muito, prosearam outro tanto. Depois, José levou o irmão para a varanda. Lá, afinando o cigarrinho, disse que tinha um pedido. Procurasse entender, era coisa de Deus. O Oreia ouviu tudo. De início, ficou assustado, mas havia tanta verdade na dor do irmão, procurou compreender.

À noite, depois do jantar, combinaram tudo. José pediu que, de mãos dadas, todos rezassem uma Ave Maria. Com uma das mãos sobre o Evangelho, explicou como tudo deveria ocorrer. O irmão e a mulher teriam intimidade apenas durante os dias de fertilidade. Os encontros seriam na mais profunda escuridão. Maria usaria, o tempo todo, uma camisola branca até os pés. O irmão não tiraria o pijama.

O ato deveria ser santo, tudo em completo silêncio, nenhum gemido. Nenhuma caricia antes ou depois. Ele, o marido, ficaria do lado de fora, encostado à porta, rezando em voz alta para afastar o diabo que, nessas horas, gosta de pôr sujeira onde não deve. Entendidas as regras, tudo aconteceu dentro do planejado.

O irmão, Varte voltou para o Pará. Quatro meses depois, recebeu uma cartinha da cunhada. Estava feliz e grávida, o plano abençoado dera certo. Que se preparasse, seria o padrinho. O que Maria não sabia é que o sofrimento mudara de lado. Agora quem vivia atormentado era o Oreia. O diabo não lhe perdoava ter comido fruto proibido.

A cunhada não saía da cabeça. Era um inferno. Mesmo na escuridão, que mulher! Mesmo com toda aquela reza do irmão na porta, que mulher! Mesmo sem um gemidinho, que mulher!!! Com o tempo, a cunhada haveria de querer um irmãozinho, telefonaria bem cedinho sugerindo a ideia. Que mulher!!!

O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e ficcionais.





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