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11/11/18 07:00 - Opini�o

O pajub� do Enem

Zarcillo Barbosa

A nação é constituída pelo território. Às vezes nem isso é preciso. Muito mais necessário é ter povo, com sua cultura, valores, tradições, música, folclore, literatura, idioma. Todas essas características são constantemente enriquecidas com incorporações e adaptações de outras culturas. O patrimônio linguístico, da mesma forma, entesoura vocábulos tecnológicos, e neologismos criados pela população. São as chamadas gírias, dialetos, socioletos ou códigos próprios que dão identidade a determinados grupos. Existem tanto na prisão como entre gays e travestis. Há até o miliquês verde-oliva. Nos quarteis chamam de arataca o soldado oriundo do Nordeste; comida é boia e furiosa é a banda do regimento. Há também a Maria-batalhão, namoradeira louca por uma farda.

Curiosamente, o presidente eleito Jair Bolsonaro resolveu problematizar uma questão da prova de Linguagens, do Enem, que trouxe a referência do Pajubá, o dialeto criado historicamente por travestis. "Tem que cobrar aí o que realmente tem a ver com a história e cultura do Brasil, não como uma questão específica LGBT. Parece que há uma supervalorização de quem nasceu assim". O futuro presidente "fez a louka". Mostrou não entender que a questão visava provocar o candidato a interpretar a existência de variações linguísticas. Os estudantes não precisavam saber o significado das palavras no dialeto. A prova, com 90 perguntas, tratava também de deficientes, preconceitos, negros, mulheres e até de celíacos (pessoas com reação imunológica ao glúten). Não precisa ser celíaco para responder à pergunta. Precisava só entender o texto, como a maioria.

Para a comunidade gay, o Pajubá tem um significado de resistência, uma vez que foi criado por um grupo em desvantagem social. É uma língua de origem ioruba, misturada ao português. O tema é relevante nas aulas de Língua Portuguesa, quando se estuda as variações linguísticas de nosso país. Tem um lado particular e outro social. Bolsonaro diz que não vai "acabar com o Enem", mas quer "ver tudo antes", na prova do ano que vem. Melhor seria se os políticos se preocupassem mais com o analfabetismo funcional, a incapacidade dos alunos de interpretarem um texto simples de quatro linhas. O Brasil gasta muito mal com educação. O teste internacional de aprendizagem, o Pisa, mostra que o ensino, no país, está estagnado desde 2006. O dinheiro não é empregado de forma mais eficiente. Países com o mesmo percentual do PIB aplicado em Educação, estão bem melhor qualificados que o nosso.

A atividade do professor, no Brasil, vai ficando cada vez mais difícil. Ganha mal, apanha dos alunos, e ainda tem que lidar com o Movimento Escola sem Partido, recorrente desde 2004. O site tem até modelo de notificação extrajudicial para que os pais que se julguem ofendidos por alguma observação do professor, demonstrem o seu descontentamento e ameacem os docentes de processo. Ai do professor que falar em greve como instrumento legítimo de defesa do trabalhador, contra a exploração dos detentores dos meios de produção. O princípio marxista, é defendido pela Constituição brasileira.

A polarização ideológica que atingiu o país nos últimos anos, tem levado a educação para o centro de uma batalha que começa a ter contornos perigosos. As pressões conservadoras querem politizar o que deveria ser tarefa de especialistas e pedagogos. Em 2015, conseguiram banir o termo "gênero" do Plano Nacional de Educação, por considerar que a palavra se referia a uma questão ideológica. Educadores dizem que, no fundo, as regras impõem uma censura dentro da sala de aula e prejudicam a formação de alunos críticos, já que eles perdem a diversidade de opiniões. Durante vinte anos como professor universitário, procurei tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas de forma justa. Com os alunos, tratava com a mesma profundidade e seriedade as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas das várias correntes, concordando ou não com elas. Sem problemas.

O Enem pode sofrer alterações no novo governo, com mudanças de conteúdo. Pode piorar se não entenderem que a escola não é uma entidade neutra. A escola tem que transmitir valores e conhecimentos à sociedade. O Enem depois de tropeços, é hoje uma porta de acesso a 50O cursos universitários, com resultados aceitos, inclusive, em centenárias universidades de Portugal. Agora, ninguém sabe qual será a matriz de referência.

O autor é jornalista e articulista do JC.





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