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22/09/18 07:00 - Opini�o

Tudo virou �gua

Roberto Magalh�es

Nunca fomos tão livres. Movidos pelo desejo, nosso carnaval dançamos no bloco do "liberou geral". Lambuzados de prazer, tudo nos permitimos, basta que na telha nos dê. Ninguém nos segura. Nada nos detém. No chão, enferrujadas pelo desuso, todas as algemas. Afônicas, as vozes que antes nos proibiam. Religiosas, éticas ou jurídicas, todas perderam a força de mando e não mais nos intimidam. Nenhum eco ameaçador em nossos ouvidos, tampouco peso algum em nossa consciência. Nunca fomos tão livres. Não obstante, nunca estivemos tão perdidos. Tão sós. Desesperados estamos.

Perdidos e, pior, sem nenhuma saída. Impossível encontrar caminho quando não se sabe aonde chegar. Estamos navegando em mar revolto sem carta náutica e sem bússola. À deriva, perdemos o sono e a paz. O estresse nos fez amargos, impacientes, não sabemos mais esperar: desistimos de um vídeo se demorar mais de 10 segundos para carregar. A insônia implora o sono da pílula química.

Nem sempre foi assim. Já navegamos em águas calmas. No mar iluminista, nosso barco se movia na certeza de que chegaríamos ao porto glorioso. A chamada "Época das Luzes" prometia-nos que o progresso da civilização nos faria felizes, realizados. Após séculos de opressão religiosa, as mentes, finalmente emancipadas, escolhiam o caminho seguro da racionalidade. Dominaríamos a natureza. Engendraríamos o progresso tecnológico. Fomentaríamos políticas liberais. O Estado garantiria o bem estar social. Mais ainda, a educação aperfeiçoaria a natureza humana. É o que nos asseguravam filósofos do porte de um Rousseau, Adam Smith, Montesquieu, Diderot... Tínhamos todas as certezas e todos os caminhos. Tudo estava solidamente firmado. Cada coisa no seu lugar. Nisso tudo acreditávamos. Desgraçadamente, não foi o que aconteceu. O pensamento iluminista muito nos prometeu, mas nem tudo nos entregou.

Frustrados, vimos o mundo paradisíaco ruir. Guerras monstruosas, fome, movimentos migratórios, desemprego, violência, desigualdade e desesperança. A história tingiu-se de sangue. Do tombo sempre nos levantamos espertos. Tamanha decepção nos fez desconfiados, quando não, céticos. Foi assim que se instalou entre nós o profundo mal estar da modernidade. O Sociólogo polonês Zygmunt Bauman criou, então, a imagem perfeita para descrever a cara do nosso tempo: "modernidade líquida". Como água, nada mais tem forma, como água, tudo nos escapa por entre os dedos, nada permanece, as coisas têm cinco minutos para ser, depois não serão mais. Tudo é descartável. A vida perdeu a forma sólida e o sentido. Perdemos as referências, nossos heróis morreram de overdose - disse o menino Cazuza. A história não caminha para lugar algum. O que era sólido, liquido virou. A única certeza é a de que somos livres. Então, nada mais nos segura, nada mais nos detém. A vida virou um vale-tudo. Perdido o amanhã, caímos de cara no hoje, sugando o orgasmo que pode nos dar.

Tanta liberdade assim nos deixou perdidos. Estamos correndo sem saber para onde. O individualismo feroz deixou-nos sozinhos com a cara pregada no espelho. Temos milhares de amigos, mas todos dentro do computador. Preferimos tudo virtual, melhor manter distância segura de todos. Conectamo-nos com pessoas e delas nos desconectamos com muita facilidade num simples toque. Melhor assim, mais confortável, mais seguro. Temos medo de quem de nós se aproxima. Estamos insones, estamos em pânico, depressivos, bipolarizados... Difícil segurar esse rojão.

Então, agarramo-nos à analgesia das drogas, sabendo que nada resolverá. Consumiremos doses cada vez maiores de superexcitação. Então, apegamo-nos à agressividade e descarregamos na cara alheia tudo o que nos machuca. Então, filiamo-nos às seitas que vendem, em extorsivo crediário, a paz de Deus e a prosperidade dos homens. Então, vamos aos shoppings e, febrilmente, compramos, compramos, compramos... Inútil, nosso vazio só aumenta.

Muitos são os analgésicos da mentirosa farmácia dos homens. Nada resolvem. Passado o efeito, a dor continua. Angustiados, estamos à espera de alguém que nos traga um fiapo de esperança, algum caminho, alguma crença, algema que seja. Nunca fomos tão livres. Não obstante, nunca estivemos tão perdidos. Tão sós. Tudo virou água. E assim vamos nós, navegando sem rumo e engolindo pílulas.

O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e de ficção.





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