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22/04/18 07:00 - Opini�o

Como se fazem os her�is

Zarcillo Barbosa

Em seu pronunciamento à nação, Michel Temer invocou as injustiças cometidas contra Tiradentes, condenado por "defender um Brasil livre, forte e independente". Sem fazer uma comparação direta, mas também indicando estar sendo injustiçado, o presidente afirma que "é fácil bater no Michel Temer", e faz referência a uma suposta "torcida organizada contra o seu governo". Revela sua convicção de que, ao final, a história vai lhe render a vitória maior, como foi o reconhecimento do sacrifício de Tiradentes.

A iconografia política sempre se pergunta: "De que material são feitos os heróis?". Certamente não entram nessa composição acusações de corrupção com o dinheiro público, recebimento de propina e lavagem de dinheiro. Levou um século para Tiradentes ser elevado à figura central no panteão dos heróis nacionais. Assim mesmo porque a República recém-instalada em 1889 precisava reescrever a história do país, criar uma nova memória que encontrasse motivos republicanos. A história vivida por Joaquim José da Silva Xavier servia bem a esse propósito. Dele se sabia muito pouco, e talvez por isso mesmo revelou-se um herói adequado a todos os gostos. O rosto desconhecido ajudava na formação do mito.

Para o historiador Amaral Fontoura, "Foi talvez uma felicidade que esse Cristo não deixasse na terra um sudário". Cada artista pode lhe dar diferente feição. Nada melhor do que associá-la à imagem do Nazareno, como pode ser visto no monumento que a República Velha ergueu no centro do Rio de Janeiro, em 1926. Pedro Américo, pintor realista de 1893, pode esquartejá-lo sobre o cadafalso, na tela "O Martírio de Tiradentes".

Cronistas da época queriam uma figura feminina para simbolizar a República. Certamente inspirados na popular Marianne, na França. A pintura de Delacroix, "A liberdade guiando o povo", celebrizou-se pela imagem da mulher jovem, que vestia uma túnica e o gorro frígio. Essa representação aliava as noções de liberdade, felicidade e fertilidade maternas. No Brasil, a alegoria fracassou.

Cem anos depois da sua morte, estudiosos do processo de Tiradentes descobriram que a Inconfidência Mineira ficou pelo caminho porque o alferes (corresponderia modernamente ao posto de tenente) foi imprudente. Convocava reuniões e alardeava aos quatro ventos os planos da rebelião. "Deu bandeira", ao encomendar o estandarte bolado por Alvarenga Peixoto com a frase Libertas Quae Sera Tamen", do poeta latino Virgílio. O triângulo vermelho da bandeira da república idealizada, indicava que os rebeldes eram maçons. Machado de Assis, numa crônica de 1892, escreve com ironia: "Esse Tiradentes, se não toma cuidado em si acaba inimigo público número um". Mas, se não fosse essa indiscrição, o que seria da história? Os analistas das faces implícitas dos textos chamam a atenção para o fato de Tiradentes ser o único pobre na rebelião protagonizada pela plutocracia mineira. Os mais prejudicados eram os ricos que pagavam um quinto de impostos.

Hoje, só no Imposto de Renda sobre salários, o governo nos toma quase um terço. Por ser um homem sem posses, Joaquim José foi eleito bode expiatório e o único sentenciado à morte. À coroa portuguesa interessava os bens dos ricos. Eles pagavam por suas vidas e degredo. Os pesquisadores que foram ler os autos do processo, começaram, daí para frente, a criar a biografia do mártir. Muito do ensinado a seu respeito nos livros escolares é totalmente ficcional. Frei Raimundo Penaforte, confessor dos inconfidentes, teria assegurado que ele "tirava, com efeito, dentes com mais sutil ligeireza e armava a boca de novos dentes, feitos por ele mesmo, que pareciam naturais". De fazer inveja aos modernos implantodontistas.

Na verdade, esse protomártir da Independência serviu como uma luva à República nascente e ainda sem rumos. A esquerda pode descrevê-lo como rebelde contra os poderosos. Para os militares foi um patriota fardado. Os republicanos o consideravam fundador da causa. Quando Tiradentes foi enforcado, tinha 41 anos. Seu corpo foi esquartejado, e os pedaços espalhados pelo caminho que ligava Minas ao Rio. A cabeça foi exposta em Vila Rica. É preciso muito sofrimento e opróbrios para passar à história.

Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideais e aspirações, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação dos regimes políticos. A observação é de José Murilo Carvalho (Mito Universal). Esse é o legado material do qual se esculpem os heróis.

O autor é jornalista e articulista do JC.





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