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19/04/18 07:00 - Opini�o

A faca e o queijo

Roberto Magalh�es

Dessa vez, ela não escaparia. Havia muito, Zé Doidão esperava essa oportunidade. O corpo desenhado da morena Iolanda, feito de carnes duras, tudo empinado, era apetrechado por demais. Coisa de peitar qualquer cristão. A danada, sabendo as carnes que tinha, adorava atiçar o desejo dos homens do lugar. Danasse aquela gente lambenta, sofresse a gente zoiúda que não sabe respeitar. Então, sem dó nem piedade, desfilava, rebolando os volumes, na mais pura provocação.

Zé Doidão, coitado, sofria com o passo calculado da malvada Iolanda. "Meu dia vai chegá, o fruto tem hora de madurá, o que tá enrolado pode demorá, mas um dia vai desenrolá. Carece a paciência da gente, num carece a gente bestá".

Não é que um dia, nas voltas que a vida dá, a coisa aconteceu. Quando menos ele esperava, o fruto carnudo da Iolanda estava ali na sua frente. Maduro, pronto pra ser comido. Era agora ou não era mais. Doidão estava com a faca e o queijo, a boca salivava e a mão, tremendo, queria, por dentro da saia, bolinar. Imaginava a pele dela arrepiando, a boca vermelha implorando, a carne, antes proibida, pedindo pra ser mordida. Era o muito esperado, não haveria de vacilar. "Toma tenência, Doidão, ocê não é cabra de bestar".

Naquela noite, Iolanda bebeu acima da conta e, mesmo estando tonta, fez a conta, pondo preço na fruta desejada. Era festa de São João na Fazenda do Fundão, numa curva empoeirada lá no fim desse mundão. Rojão, munguzá, pé-de-moleque, pipoca, paçoca, café e muita cachaça rolando no arrasta-pé. Dançava homem com mulher, também mulher sem homem pegando outra mulher, dançavam a sanfona, o triângulo e a zabumba. Zé Doidão, aproveitando o clima, partiu pra cima da menina e, num agarrão machudo, a cinturinha dela no corpo dele colou. "É agora, num tem dispois, tô com a faca, tô com o quejo, é penetrá a língua, é lambuzá um bejo, porque a coisa na minha mão tá." A língua, então pontuda e endurecida, enfiou-se vermelha pela boca da morena. Iolanda, zuretada, mais do que isso emputecida, sentindo-se invadida, defendendo a categoria, esgoelou: "Seu corno, filho duma égua, ocê num sabe que muié quenga não se entrega pela boca? Num sabe que boca de muié da vida é coisa dada e pertencida a um home só, o verdadero?" Foi o que ela disse pra essa a língua intrometida. E teve mais: na cara do Doidão deu um safanão; depois, no peito, um empurrão: "Vai bejá sua mãe, estrupiço, programa tem preço, mais língua de bejo isso num tem não! Paga logo o cumbinado, passa pra cá o vintão. Aí sim, se pagá, pode fazê o de direito, sei honrá cumprumisso. Criente bom num tem cara, nome também num tem, rola com a gente, mata a fome, mais depois, sem beijá, somi na poera, que a fila não carece atrapaiá".

Foi então que o desejo ereto do Doidão tentou engabelar a morena prometendo coisa diferente de grana, diferente de programa. Daria para ela, querendo, casa, comida, cama pra toda vida, tudo escrito no papel, preto no branco, bem direito, do jeito que o padre gosta.

Besteira foi a promessa, ficou pior a emenda: "Chega de lenga-lenga, eu num sô besta não. Ocê pensa que eu vou caí em arenga, Doidão? Sou muié da vida, ocê sabe disso, muié exprimentada. Vai, cara, resorve, num embaça não, ou paga ou desocupa a moita que a noite ainda pode me valê uns trocado. Decide logo, Doidão, que esse quejo tem preço, mas bejo repito num vai tê não". Resorve, cabra da peste, se a fruta ainda vai querê cumê.

O autor é professor de redação e membro da Academia Bauruense de Letras [email protected]





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