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01/11/09 03:00 - Opini�o

A maldi��o de Caim

Zarcillo Barbosa
A humanidade mudou os seus conceitos. O Velho Testamento, por exemplo, aceita o trabalho escravo, o infantic�dio, o marido que bate na esposa, a puni��o com a pena de morte. S�o condicionamentos sociais de uma �poca que n�o podem ser analisados � luz dos tempos ditos modernos. A B�blia foi escrita h� mil anos. S�crates, Plat�o e Arist�teles, reconhecidamente s�bios, foram escravagistas h� 2.400 anos. Algu�m tinha que executar as tarefas penosas enquanto os gregos se dedicavam ao ��cio criativo�. Assim mesmo h� os que se dedicam a ironizar, de forma at� irreverente e mordaz o �nico livro considerado Patrim�nio da Humanidade, que � a B�blia. A grande novela do mundo. A mais traduzida publica��o da hist�ria, embora poucos a leiam. A B�blia � uma est�ria de um povo em busca do seu destino, no qual se misturam mitos, met�foras e fatos hist�ricos. � o espelho da Humanidade com suas baixezas e seus esplendores. �O melhor e o pior de deus e da hist�ria est�o concentrados nesse livro que poderia ser a imagem pl�stica da complexidade do ser humano�. (Juan Arias, �A B�blia e seus segredos�, Objetiva).

Existe na B�blia o Pentateuco, com um deus ciumento que expulsa Ad�o e Eva do Para�so; o que confunde caprichosa e gratuitamente as l�nguas daqueles que constroem a Torre de Babel; ou manda matar os habitantes de cidades inteiras. Existe o livro do Eclesiastes, contra a vaidade humana; ou o C�ntico dos C�nticos, com sua for�a er�tica, um canto a beleza do corpo humano e � sua sexualidade.Um livro libertador.

Depois de 20 anos do seu �Evangelho segundo Jesus Cristo�, o pr�mio Nobel Jos� Saramago volta a nos confrontar com a n�o exist�ncia de deus (assim mesmo, inicial min�scula). Em seu novo romance, �Caim� (Cia. das Letras), Saramago vai al�m: pretende acertar contas com esse deus a quem ele diz que n�o invocaria nem no momento da pr�pria morte, porque nada teria a pedir. � famosa a �Aposta de Pascal� (Blaise Pascal, 1623-1662), racioc�nio utilitarista sobre a exist�ncia de Deus. Quem acredita, tem tudo a ganhar, certo ou n�o. Quem duvida, nada ganha se estiver certo e vai para o inferno se errado. Saramago n�o teme o fogo eterno. Sente-se no c�u na sua miss�o de provocar, instigar a pol�mica e obrigar o leitor a pensar. Quer desmascarar o deus cruel e exterminador. O homem, apenas o homem �, definitivamente, o deus de Saramago. O homem v�tima dos poderes tir�nicos, o homem humilhado pela religi�o, o homem escravo dos seus mitos, come�ando pelo mito de Caim e Abel, que Saramago converte num jogo liter�rio. O irm�o de Abel n�o nega seu crime. Aceita o castigo da vida errante. Mas, o culpado foi deus que desprezou os sacrif�cios que Caim lhe oferecia para preferir os do seu irm�o Abel. Deus matou muito mais que Caim. Mandou despejar fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra e matou milhares de inocentes. Chega � crueldade m�xima de mandar Abra�o matar o pr�prio filho. A B�blia est� cheia de som&f�ria � trai��es, viol�ncia, incestos, estupros, assassinatos.

Saramago poderia ter sido mais generoso. Referir-se ao profeta Isaias, por exemplo, cujo deus � mais preocupado com o homem e o trata com amor filial. O autor � contundente. Diz que a B�blia � um guia, sim, mas de �maus ensinamentos�. Prefere o conflito: �A hist�ria dos homens � a hist�ria dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a n�s, nem n�s entendemos a ele�. Considera Deus uma �entidade ciumenta, cruel e insuport�vel� que s� existe na imagina��o dos homens. Quem sabe, por isso mesmo Mahtma Ghandi (1869-1948) j� advertisse que �Deus n�o tem religi�o�. � evidente que um l�der espiritualista n�o chega aos p�s da irrever�ncia de um �sal-amargo� a ponto de dizer que deus � um pretexto para que as religi�es possam escravizar a consci�ncia humana. Apesar do seu ate�smo � Deus tamb�m � ateu porque nada existe acima d�Ele � o escritor portugu�s tem uma das defini��es mais po�ticas da divindade: �Deus � o sil�ncio do universo, e o homem o grito que d� sentido a esse sil�ncio�. Afinal, deus n�o � para ele t�o indiferente como possa parecer. Cumpre-se a maldi��o de Caim � a criatura sempre se volta contra o criador.

O autor, Zarcillo Barbosa, � jornalista e colaborador do JC




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