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06/10/01 00:00 -

Uma "filosofia" quase extinta

Uma "filosofia" quase extinta

Marcelo Ferrazoli
As frases de pára-choques de caminhões já foram a marca registrada destes veículos e seus condutores, mas hoje são raridades.

Elas já foram uma verdadeira “febre” entre a maioria dos caminhoneiros, principalmente durante as décadas de 70 e 80.

Com inteligência e muito bom humor, as frases de pára-choques de caminhão criaram uma “filosofia” particular das estradas, expressando uma das características mais puras da cultura popular brasileira, que é a de brincar com a própria desventura.

Para isso, os caminhoneiros utilizavam os mais variados temas. Há as inspiradas em críticas, protestos, sentimentos, religiões e as que lembram acontecimentos políticos e sociais.

A mania das frases abriu um grande mercado para os pintores de letras, que praticamente todos os dias tinham trabalho de sobra com os caminhoneiros. Muitos pintores de carrocerias, além de bons no pincel, eram muito criativos e por isso mesmo procurados. Alguns montavam cadernos com centenas de frases e a maior parte delas tinha como tema preferido as mulheres.

Mas hoje a realidade é diferente. Encontrar uma frase pintada em pára-choque de um bruto é quase tão difícil quanto ganhar na loteria. Os motivos para o sumiço dos painéis bem-humorados nos caminhões são vários e refletem as profundas mudanças econômicas no País, sentidas e muito pelos caminhoneiros.

A categoria tem sido duramente atingida pelo excessivo número de pedágios nas estradas nacionais, que consomem boa parte do valor dos fretes ganhos pelos caminhoneiros transportadores de cargas. Segundo Waldir Faria Freitas, presidente do Sindicato dos Taxistas, Caminhoneiros e Transportadores Autônomos de Bauru e Região, em uma viagem só de ida para São Paulo, por exemplo, um caminhoneiro não consegue ter lucro. “Em razão dos pedágios, ele consegue somente empatar as despesas. O caminhoneiro só terá lucro se, ao retornar, estiver transportando outra carga. Caso contrário, ficará no prejuízo”, afirmou ele.

Com poder aquisitivo reduzido e desanimados pela situação atual da profissão, os caminhoneiros desestimulam-se a investir recursos para incrementar seus veículos com as frases que marcaram época nas estradas brasileiras. Além disso, também colabora para a ausência dos painéis nos brutos o fato de muitas transportadoras, em nome da padronização de suas frotas, não permitirem a utilização de tais adereços nos caminhões.


Criatividade


Realidade à parte, as frases de caminhões sempre abriram espaço para brincadeiras e curiosidades, incentivadas pela criatividade dos motoristas.

O sindicalista Waldir relembra de um fato, que não se sabe ao certo ser verídico ou não, que o marcou. Ele conta que um caminhoneiro, após ter dado carona a um policial rodoviário que possivelmente atuava em Bauru, teria sido multado pelo mesmo no momento em que a autoridade descia de seu veículo. Para “homenagear” o policial, que não teria perdoado as infrações mesmo após o gesto de companheirismo prestado pelo condutor do veículo, o caminhoneiro teria criado uma frase para colocá-la no pára-choque. Ela seria assim: “Dirigido por mim, guiado por Deus e multado pelo...”, completando a frase com o nome do policial que o autuou. “A história em torno da frase é lembrada até hoje por muitos”, afirmou Waldir.

Ele destaca que as frases foram uma das maneiras encontradas pelos caminhoneiros para se distraírem durante o trabalho, cujas dificuldades, mesmo em épocas anteriores, sempre existiram. “Elas os ajudavam também a matar um pouco a saudade da família, pois muitos caminhoneiros costumavam permanecer até três meses fora de suas residências”, disse Waldir.

As frases preferidas do líder sindical são “A vida é dura para quem é mole” e “Se me encontrar abraçado com mulher feia, pode apartar que é briga”.


Boas lembranças


O bauruense José Carlos Capossi, que há 35 anos atua no ramo de pintura de letras e faixas, é um dos que presenciou a fase “áurea” das frases.

Segundo Capossi, sua atividade envolvia a realização de diversos serviços, mas um dos principais era a pintura das frases em pára-choques de caminhões. “Naquela época, os caminhoneiros eram melhores de vida e enfeitavam mais seus veículos. Por essa razão, não ficava um dia sequer sem pintar um painel para caminhão. A atividade era o meu carro-chefe e, graças a ela, consegui construir minha casa quando casei”, afirmou ele.

O pintor contou que ao longo do tempo foi acumulando frases em um livro a fim de mostrá-las como exemplo a seus futuros clientes. Apesar de não precisar o número, Capossi acredita que tenha chegado a reunir cerca de mil frases. “Para isso, contei com a colaboração de amigos e dos próprios motoristas, que se baseavam no mostruário que eu possuía para escolher a frase e o tipo de letra que iriam querer para serem pintadas em seus caminhões”, esclareceu ele.

Capossi relembra, sem esconder a tristeza e a emoção, de quando fazia serviços para companheiros que se encontravam em melhores condições financeiras. “Conheço pessoas que eram proprietárias de até oito caminhões que hoje precisam trabalhar como empregados para garantir o sustento de suas famílias”, relatou o pintor.

Fatos curiosos também não faltaram para Capossi. O pintor revelou que um dos que mais lhe marcou aconteceu quando um motorista lhe pediu para escrever “Mantenha distância” na traseira de seu bruto. “Juntei meu material e comecei a pintar. Mas após certo tempo, o caminhoneiro abriu a porta do veículo, deu partida e foi embora, deixando-me com a lata de tinta e o pincel na mão e sem terminar o serviço”, disse ele, para depois complementar:

“Trinta dias depois ele retornou desculpando-se e pedindo para concluir o serviço, pois tinha esquecido do combinado. Ele falou que só foi lembrar do que tinha me solicitado lá pelas bandas de Jaú, mas aí já era tarde”.




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