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Troca de seringa ajuda reduzir aids

Troca de seringa ajuda reduzir aids

Sabrina Magalhães
A troca de seringas para usuários de drogas injetáveis é uma estratégia usada para evitar a disseminação da aids

Minimizar as conseqüências negativas do uso de drogas é uma estratégia adotada pelo Ministério da Saúde há vários anos. São os programas de Redução de Danos: usuários de drogas injetáveis são incentivados a trocar as seringas usadas por novas, no intuito de evitar a disseminação da aids e de outras doenças de transmissão sangüínea. A idéia principal é que, se o indivíduo já se prejudica usando drogas, pelo menos, que não se contamine.

No Brasil, o projeto foi implantado, pela primeira vez, em meados da década de 90, na cidade do Rio de Janeiro. De lá para cá, a iniciativa conseguiu mudar o hábito de compartilhar seringas, reduzindo a incidência de doenças.

De acordo com a médica infectologista Denise Arakaki, responsável pelo programa DST/Aids da Direção Regional de Saúde (DIR-10), Bauru deverá implantar o Projeto de Redução de Danos nos próximos meses. Ela afirmou que representantes municipais participaram de uma reunião com a Secretaria de Saúde do Estado e do Centro de Referência e Treinamento de São Paulo para estudar os meios de iniciar o projeto na cidade.

“Temos um Ambulatório de Saúde Mental, que já trabalha, de maneira modesta, com usuários de drogas, mas que poderia ser um parceiro nosso nas atividades de prevenção de HIV entre usuários. Tudo depende de encontrarmos os agentes redutores de danos na nossa comunidade, pessoas que estejam dispostas a participar. Mas a idéia é implantar entre o final deste ano e começo do ano que vem”, disse.

Ela informou que a Secretaria Municipal de Saúde já se mostrou interessada em abraçar a causa, mas falta dar um formato à estratégia, sistematizar formas de atendimento e formalizar as propostas.

Pessoas interessadas em participar do projeto, como usuários inscritos ou agentes de redução de danos, podem entrar em contato com Maristela, pelo telefone 235- 1463, período da manhã.

A conclusão de que a troca de seringas dá resultado foi apresentada pelo médico psiquiatra da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Paulo Roberto Telles, que é presidente do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Abuso de Drogas. A equipe de reportagem do Jornal da Cidade conversou com ele durante a I Jornada de HIV/Aids e Redução de Danos, realizada em Bauru.

Jornal da Cidade: Qual a origem do Projeto de Redução de Danos?
Paulo Telles:
O projeto de Redução de Danos do Rio de Janeiro começou em meados da década de 90. Eu diria que foi considerado um projeto piloto do Ministério da Saúde. Na verdade, alguns centros de tratamento para usuários de drogas e algumas cidades que tinham grande número de usuários de drogas injetáveis naquela época foram convidadas para implantar o projeto. Inicialmente, foram seis projetos, incluindo o Rio. Existiram três iniciativas anteriores - uma em Santos, no final da década de 80, uma em Salvador -, mas não financiadas diretamente pelo Ministério da Saúde. Esse foi o início da redução de danos no Brasil.

JC: Inicialmente, qual era a proposta do projeto?
Telles:
Era ter uma estratégia eficaz para impedir a difusão da aids entre usuários de drogas injetáveis. Primeiro, usou-se a repressão para cortar o problema das drogas. Você criminalizava o usuário, o produtor, o traficante. Só que essa forma de agir não surtiu efeito. A repressão não funciona nem para o consumo de drogas, nem para a questão fundamental, que era barrar a disseminação da aids. Pelo contrário, essa forma de lidar com o problema foi um complicador em relação à aids.

JC: Por quê?
Telles:
Só para dar um exemplo, houve uma proibição da venda de seringas. A idéia era tirar as seringas do mercado para que as pessoas não se injetassem. O tiro saiu completamente pela culatra, porque quem queria se injetar, continuaria se injetando. Elas simplesmente faziam com que uma única seringa circulasse por dezenas de pessoas. Depois, elas alugavam aquela seringa para mais dezenas de pessoas. Então, a seringa tornou-se mais um bem que circulava. Ou seja, você tinha um vetor de infecção para dezenas de pessoas. Foi assim que muitas pessoas se infectaram. Outra complicação, talvez fundamental, é que com a repressão e a criminalização do uso de drogas, você marginaliza o usuário de drogas. Afastando o usuário da sociedade, você o afasta de um possível tratamento e só piora a situação.

JC: A redução de danos seria uma alternativa para isso...
Telles:
A redução de danos tinha uma conduta completamente diferente. Aceitávamos que as pessoas podiam estar usando drogas, que elas poderiam não estar conseguindo interromper o vício e, mesmo assim, teríamos alguma coisa a fazer por elas. No caso da aids, foi fundamental ver que poderíamos evitar que as pessoas se infectassem, que a epidemia se difundisse, mesmo se continuassem usando drogas injetáveis. Foi a partir desta constatação que conseguimos ter a redução de danos como uma estratégia preferencial para lidar com o problema.

JC: E como funciona o projeto?
Telles:
Basicamente, tenta-se minimizar os danos relacionados ao uso de drogas. A idéia é passar informação para que a disseminação da aids não aconteça e disponibilizar materiais para essa prevenção. Paralelamente, tentamos resgatar o usuário de drogas da marginalidade e fazer com que a relação dele com as drogas seja, entre aspas, mais saudável.

JC: É um problema a menos...
Telles:
E um problema que poderia ser irreversível, porque o uso de drogas pode ser interrompido com um bom tratamento. Se a pessoa for infectada de alguma patologia como a aids, ela está condenada para o resto da vida. Até agora, a aids tem um bom tratamento, mas não tem cura.

JC: Mas qual é a estratégia do projeto? Sabemos que existe a troca de seringas...
Telles:
Há todo um contexto de redução de danos. A aproximação do usuário é fundamental. O aconselhamento, a conversa, a informação, o acesso que conseguimos à comunidade em que ele está, você pode dar atenção à saúde do usuário. A troca de seringas é mais uma atividade do programa, considerada muito importante, porque é o atrativo para o usuário entrar no processo. A troca de seringas é como se fosse um anzol - você pesca o usuário e, a partir daí, você consegue que ele se modifique. A seringa limpa é fundamental para você não se infectar. Assim, você faz com que o uso da drogas injetáveis seja seguro, pelo menos em relação contaminação pela aids e outras doenças de transmissão sangüínea.

JC: Dê um exemplo de como esse processo acontece: vocês procuram o usuário ou ele vai atrás de vocês?
Telles:
No Rio, no início, nós íamos atrás dos usuários, que eram marginalizados. Em geral, eles não são bem vistos pela sociedade, são discriminados pelos próprios usuários de drogas não injetáveis. Então, essa população era extremamente difícil de encontrar. Tivemos que correr atrás deles, contactando usuários em tratamento para buscar informações, terapeutas de usuários, profissionais do sexo, médicos, hospitais, foram várias estratégias utilizadas. O projeto tem mais ou menos seis anos e a situação vem tomando uma característica diferente. Passamos a não procurar mais. O próprio trabalho de redução de danos começou a atrair o usuário, que já procura o projeto.

JC: Teóricos da Comunicação defendem que a comunicação entre “iguais” - que são pessoas que pertencem a um mesmo grupo, “tribo” ou que desempenham a mesma atividade - é uma excelente estratégia de promoção de saúde. O senhor acha que isso foi importante neste projeto?
Telles:
Totalmente. É preciso falar a mesma linguagem. É preciso, muitas vezes, usar interlocutores que pertençam ao grupo, à camada social em que o usuários está. Então, foi fundamental. Usamos, inclusive, ex-usuários, como agentes do projeto. Estamos trabalhando com pessoas que têm uma tolerância muito pequena à frustração. Se você coloca dificuldades nesse processo, você afugenta os usuários. É muito importante estabelecer uma relação de confiança, de honestidade com ele. Ele tem que saber que você não quer nada, apenas proteger a saúde dele e evitar que doenças se alastrem para outras pessoas. Também sabemos que a contaminação se dá por outros meios, que o usuário tem uma vida sexual bastante ativa, com múltiplos parceiros, enfim, temos que estar atentos para tudo isso também e oferecemos orientação, preservativos e assim por diante.

JC: Então, quando a pessoa chega ao projeto, ela é encaminhada para onde?
Telles:
No primeiro contato com o usuário, o fundamental é você estabelecer uma boa ligação e ir desenvolvendo a confiança aos poucos, de modo que ele encontre um referencial em você. Muitas vezes, o usuário só procura o projeto para pegar seringas, porque essa é a única demanda dele. É importante o agente fazer crescer essa relação, estabelecendo um contato melhor, conversar um pouco, perguntar como ele está, o que tem feito, até passar para um aconselhamento, questionando, inclusive, o uso das drogas, se está prejudicando, falar do risco de perder o emprego e, eventualmente, abrir uma brecha para o tratamento.

JC: Isso, numa fase posterior...
Telles:
Isso. Na fase inicial, o fundamental é a estratégia para ele não se infectar e não infectar outras pessoas. Mas essa relação não pára por aí - o objetivo da redução de danos é estreitar o relacionamento, trazer valores abandonados, resgatar a historicidade dessa pessoa, fazer com que ela se valorize, que se cuide, que se ache menos “lixo”, que se injete com uma água destilada, em vez de se injetar com água da poça. Enfim, eu acho que nosso trabalho vai muito além da troca de seringas e pode culminar, eventualmente, numa terapia mais formal para o uso de drogas ou no tratamento para a aids.

JC: No Rio, quantas pessoas participam deste projeto?
Telles:
Esse número é muito flutuante, mas, em média, trocamos 3,5 mil seringas por mês. E é troca mesmo, se ele traz dez, leva dez. Se trouxer 100, leva 100, até pelo fato destas seringas não estarem mais sendo jogadas no meio ambiente, infectando outras pessoas. Mas nós evitamos distribuir seringas. E temos diversos outros trabalhos para quem participa do projeto: oferecemos vacinação para hepatite B, testagem para HIV, testagem para hepatites A, hepatite B e hepatite C... De um ano e meio para cá, 750 pessoas que passaram pelo projeto preencheram um questionário, fizeram os testes e se vacinaram.

JC: Esse projeto está se espalhando pelo Brasil...
Telles:
Sim. Foram duas experiências iniciais e seis projetos do Ministério da Saúde. De 1996 para cá, já temos mais de 70 projetos de redução de danos no Brasil, a maioria financiada pelo Ministério ou por secretarias de Saúde estaduais e municipais. Então, temos um desenvolvimento incrível da estratégia no Brasil.

JC: A Organização Mundial de Saúde (OMS) aprova?
Telles:
Aprova, estimula, incentiva e subsidia essas estratégias. No Brasil, de certa forma, existe um consenso. O Ministério da Saúde adota como estratégia fundamental para uso de drogas e aids e hoje em dia, temos uma opinião pública muito mais simpática.

JC: O que não acontecia no início, não é? Foi uma batalha...
Telles:
Foi uma batalha muito grande. Mas eu diria que o ponto fundamental foi a Conferência Internacional de Redução de Danos, de 1998, que foi muito divulgada pela imprensa, ajudando que as pessoas deixassem de ter uma idéia intuitiva do problema para ter uma idéia mais realista, ou seja, deixaram de acreditar que a troca de seringas iria incentivar o uso de drogas injetáveis para entender que o usuário vai usar mesmo e que a troca vai impedir o uso compartilhado e a contaminação de outras pessoas.




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