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10/06/01 00:00 -

Professor leva comunicação à África

Professor leva comunicação à África

Sabrina Magalhães
Jesus desenvolve, há 2 anos, projeto para implantação de emissoras de rádio e televisão nas comunidades moçambicanas

O projeto do Governo de Moçambique, no continente africano, para a implantação de emissoras de rádio e televisão comunitárias, iniciado em 1998, está sendo coordenado por um bauruense. Antônio Carlos de Jesus é professor universitário na área de Comunicação Social desde 1973 e, atualmente, é coordenador do curso de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac) da Unesp de Bauru.

Jesus iniciou sua experiência em radiodifusão com o projeto de implantação da rádio universitária de Bauru, a Unesp FM, na década de 80. Desde então, foi solicitado por diversas universidades do Brasil e de países da América Latina para auxiliar na execução de projetos semelhantes.

Em 1997, o Governo de Moçambique pediu ajuda à Organização das Nações Unidas (ONU) para encontrar meios de levar informação e orientação à comunidade local - estima-se que 73% da população moçambicana residam no campo, em situação extremamente precária. Depois de fazer um diagnóstico da situação, a ONU acionou o Radio Nederland Training Centre (RNTC) - um centro de treinamento para profissionais de rádio e televisão da Holanda - para analisar o que seria possível fazer. Jesus é consultor da RNTC e foi designado para coordenar o projeto.

O professor mudou-se, com a família para a África, onde permaneceu por quase dois anos. Ele voltou para Bauru em fevereiro deste ano e contou, em entrevista ao Jornal da Cidade, um pouco da sua experiência.

JC: O que é o projeto de comunicação comunitária de Moçambique?

Jesus:
O Governo de Moçambique, nos últimos anos, tem passado por uma série de problemas. Ele esteve um grande período em dependência de Portugal. Depois, passou ao regime comunista, seguido por uma guerra, com todas as repercussões que as guerras trazem. O Governo percebeu que precisava desenvolver a sua população e, para isso, a educação era um ponto vital. Atualmente, 71% dos 16,67 milhões de habitantes de Moçambique são analfabetos e 73% da população moram no campo. É um país extremamente pobre, em estado lastimável, que precisa de desenvolvimento, saúde, estradas e contato com a comunidade. Além de tudo isso, Moçambique tem um alarmante índice de casos de aids - são cerca de mil casos por dia.

JC: Casos registrados...

Jesus:
Registrados, mas estima-se que o índice seja muito maior. A Uniaids, um organismo da ONU que se trata da aids nos países subdesenvolvidos, estima que, em 2010, a população de Moçambique será reduzida a 9 milhões de habitantes, um saldo pior que o de uma guerra (...) Hoje, o País não tem condições financeiras de dar nenhuma assistência a esses doentes. Isso é um grande drama. O indivíduo aparece contaminado e em 2-3 meses morre. O Governo está preocupado em informar e orientar a comunidade o mais rápido possível para tentar bloquear essa disseminação.

(...) Outro problema sério é a prostituição. Meninas de 10 anos já estão nos corredores (rodovias para escoamento de produtos do interior ao litoral). Quando elas menstruam, os pais as mandam para as ruas e nos corredores existe dinheiro. Uma família ganha, por mês, o equivalente a R$ 20,00 vendendo batata, banana. A menina, em cada relação, ganha cerca de US$ 1,00 ou presentes (lenços, tecidos, brincos). E elas se prostituem sem qualquer cuidado. Em breve, ficam grávidas e já estão doentes. Hoje, Moçambique já tem 2,6 mil bebês que nasceram com aids. E o Governo espera que elas morram, porque não tem outro mecanismo.

JC: É aí que entra o projeto...

Jesus:
Esse conjunto de problemas levou o Governo moçambicano a recorrer às Nações Unidas para buscar mecanismos de informar a comunidade sobre seus direitos, deveres, responsabilidades, necessidades, enfim, levar o maior número de informações possível para tentar evitar que haja essa tragédia populacional estimada para 2010. A ONU chamou especialistas em comunicação para fazer um levantamento da situação e eu fui chamado, através da RNTC, para tomar conhecimento desse diagnóstico e verificar o que seria possível fazer.

JC: Qual era a situação?

Jesus:
Quando eu cheguei, só existiam emissoras de rádio e televisão na capital, Maputo, e cidades provinciais. Era uma rádio estatal (Rádio Moçambique), com dez repetidoras, e três emissoras de televisão: a TV Moçambique, que é estatal, a RTK, que é de um empresário, e a TV Miramar, que é do bispo Edir Macedo. Esta emissora reproduz 83% da programação da Rede Record que é veiculada na cidade de São Paulo. Isso é lastimável para nós, porque uma emissora que deveria estar voltada, exclusivamente, para o desenvolvimento do país, limita-se a repetir a uma programação que não tem nenhuma relação com aquela realidade.

JC: Então, o sr. desenvolveu o projeto...

Jesus:
É, numa primeira fase, em agosto de 98, o projeto se propôs a implantar sete emissoras de rádio. Em julho de 99, fui convocado para opinar num projeto de desenvolvimento de TV rural e a ONU pediu que eu assumisse a responsabilidade de implantar as emissoras também, porque havia o dinheiro e o equipamento, mas faltava orientação (...) Hoje, temos 16 rádios comunitárias instaladas lá e sete emissoras de TV.

JC: E como é a programação?

Jesus:
Nas emissoras de TV, a programação é a da TV Moçambique (estatal) e temos duas horas por dia para inserção da programação comunitária. Mas, como a nossa capacidade de produção é muito pequena, fazemos apenas dois programas de meia hora cada. Os programas são feitos nas pequenas comunidades, porque as rádios e TVs comunitárias só são instaladas nas cidades do interior, com 150 mil a 400 mil habitantes. Um detalhe: quando falo em cidades, não é a nossa concepção de cidade - são pequenos agrupamentos de pessoas, próximos uns dos outros, que chegam a esse número. Os programas têm entrevistas, orientações e debates sobre direitos e deveres, pequenas reportagens sobre o que a comunidade faz, sobre suas necessidades e carências. Na verdade, é uma trabalho primário, que, no Brasil, seria considerado amador. Mas para eles não.

(...) Aliás, nosso maior desafio foi formar pessoas para trabalhar nessas emissoras, porque a comunidade é muito carente em alfabetização. Aqueles que estudam, fazem até a 4.ª ou 6.ª séries. As emissoras operam com uma média de dez voluntários cada uma, porque o Governo só consegue manter cinco funcionários para rádio e oito para TV. Se é suficiente? Para essa realidade sim - e não tem como fazer de outra forma.

JC: Como foram formadas essas pessoas?

Jesus:
(...) Montamos um centro de treinamento na Capital com tecnologia de altíssima qualidade e fizemos três cursos de formação. O primeiro grupo formou 14 capacitadores, porque os profissionais estrangeiros tinham tempo limitado no País e precisavam transferir informação. Esses capacitadores, neste momento, estão em campo, divididos pelo País todo, formando mais pessoas. Depois disso, formamos 72 profissionais para rádio e 68 para TV. São jovens (50% homens e 50% mulheres) capazes de operacionalizar os sistemas, manusear equipamentos e produzir programas locais.

(...) Outro problema com o qual nos deparamos foi o idioma. Apenas 23% do País fala português. O restante, em cada região há, pelo menos, dois idiomas locais. Como fazer uma programação que consiga informar? Sabemos que rádio é som, então, montamos uma programação com todas essas preocupações, diversão, música, promovendo a interligação das manifestações culturais em todas as partes do País. Só que montamos uma programação com 1h30 de duração em português e refazemos, a mesma programação, em mais duas línguas locais. Então, o profissional contratado tem que falar dois idiomas - o português e uma língua local. Para nós, isso foi um grande desafio, porque eu nunca imaginei que teríamos que construir esse tipo de operacionalização de programa.

JC: As rádios também seguem a programação estatal, com inserções locais?

Jesus:
Para as emissoras de rádio, a programação é um pouco diferente. No campo, elas funcionam das 5h30 às 9 horas e param, voltando das 12 às 14 horas, depois das 16h30 às 20 horas. Por quê? Porque vão trabalhar. Cada família tem um pequeno lote (cerca de 100 metros quadrados), onde elas produzem para sobreviver. Eles estão tão acostumados com a tragédia, que, se há um problema climático, eles conseguem ficar sem comida por um tempo, até plantar e colher outra coisa. É uma população muito carente e que só tem uma refeição por dia, geralmente com farinha de milho ou mandioca, frutas e um tipo de peixe com muitos espinhos que só pode ser ingerido quando muito bem cozido e amassado.

JC: Com tanto sofrimento, eles têm algum tipo de prazer?

Jesus:
Sem dúvida, é uma população muito sofrida, que viveu problemas de colonização e agora enfrenta uma democracia. Eu digo enfrenta, porque é um país extremamente pobre, onde pouca gente quer investir e tudo depende de dinheiro externo lá. Então, a grande esperança que eu consegui perceber na população de Moçambique é no futuro. Eles acreditam que, no futuro, as coisas vão melhorar e tudo vai ser resolvido. Mas, veja bem: para eles, o “tudo” é ter uma alimentação melhor, ter escola, emprego, orientação para vencer os desafios e ter a liberdade que eles imaginam que vão conseguir ter - nada além disso. É evidente que há “filhos” moçambicanos que vêm estudar no exterior e voltam para melhorar as condições do País, para ajudar o País a vencer essas dificuldades com mais velocidade.

(...) Eu cheguei a ver, em dois anos, Moçambique desenvolver um pouco mais: em 23 de dezembro de 2000, foi inaugurado o primeiro shopping deles. Num País onde o conceito de shopping chega no ano 2000, pode-se imaginar que a situação é bastante complexa.

JC: Com tanta miséria, as pessoas têm aparelhos de rádio e TV?

Jesus:
Sim, nós montamos as emissoras e oferecemos, em média, 2 mil aparelhos de rádio a cada comunidade. Aparelhos a corda ou energia solar, porque eles não têm eletricidade. E as pessoas se reúnem ao redor do rádio, cerca de 20 a 30 para cada rádio. É audiência coletiva. São muitos anos passados da nossa realidade. Com a televisão também, você tem um aparelho para cada grupamento de, mais ou menos, 10 casinhas. A casinha do moçambicano no campo é um cômodo só, redondo, com 2-3 metros de diâmetro, onde todos dormem sentados. As casas ficam ao redor de um fogão coletivo, ao ar livre (...)

JC: Professor, valeu a pena ir para a África?

Jesus:
Foi o maior desafio até hoje da minha vida. A gente diz que o homem casa, tem filhos e planta uma árvore. Eu tenho dois maravilhosos filhos, uma neta e um País para cuidar. Não tenho nenhuma árvore, mas eu acho que vale a pena. É muito emocionante e a gente tem que ter uma estabilidade emocional muito grande, porque, senão, você não agüenta o desafio. Porque você tem um potencial, mas tem que acompanhar a velocidade que a comunidade permite. Às vezes, a gente se sente incapaz. Aí você vê aqueles que você ensinou a usar o microfone fazendo programas, entrevistas e isso dá uma reerguida. Se esse foi o grande desafio, foi também o estímulo permanente. Acho que esse foi o ponto mais importante, porque lá eu plantei, acompanhei o crescimento e colhi, imediatamente, o fruto.

(...) A presença da minha família lá foi muito importante, porque durante o dia eu vivia a tragédia e, à noite, eu dividia as angústias e ansiedades com a família. Foram eles que seguraram a barra em todos os momentos e foi uma grande experiência para eles também. Uma lição, um aprendizado que não se encontra em nenhum livro. Você tem que viver.




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