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Tudo por carta

Tudo por carta

Gustavo Cândido
No premiado filme nacional "Central do Brasil", a personagem Dora, interpretada por Fernanda Montenegro, ganhava a vida redigindo cartas para pessoas que não sabiam ler ou escrever. A primeira impressão que se tem quando essa cena é mostrada é que mandar notícias (e esperar por elas) usando os Correios é uma coisa ultrapassada, usada pelo cineasta de uma maneira exagerada para demonstrar a precariedade na qual vivem as pessoas que circulam pela Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Afinal de contas, num mundo imediatista, onde os computadores avançam em todas as direções e um grande número de pessoas já tem um segundo nome-endereço com uma arroba no meio, parece quase irreal que alguém ainda prefira pegar um pedaço de papel, escrever, colocar num envelope, selar, enviar e esperar uma resposta que pode demorar alguns dias ou semanas para chegar. Mas assim como mostra o filme, existem muitas pessoas no Brasil, que em pleno século XXI, ainda optam pela carta quando querem entrar em contato com pessoas que moram longe.

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) pode demonstrar essa tendência em números. Segundo um balanço da empresa, a circulação de cartas no País cresceu 36% de 1999 para 2000. No passado, foram enviadas cerca de 5 bilhões de cartas simples no Brasil, contra 3,6 bilhões no ano anterior. Ainda de acordo com os Correios, é do Estado de São Paulo que sai o maior número de cartas entre todos os Estados da União: 2 bilhões, 218 milhões, 916 mil e 932 cartas em 2000, quase metade do número total.

Em Bauru, o volume de correspondência também tem aumentado. Segundo dados da assessoria de comunicação social da Diretoria Regional São Paulo Interior, localizada na cidade, no primeiro trimestre deste ano, o tráfego postal na cidade e na região teve uma média diária de 517.925 objetos, enquanto no mesmo período do ano passado a média diária foi de 406.736 objetos. A diferença representa um aumento de 27% no volume de correspondência de um ano para o outro.

Voltando a lembrar da Internet, esses números parecem surpreendentes, mas talvez nem sejam tanto. Os computadores estão presentes nos lares de apenas 4% da população do País, ou seja, atingem, aproximadamente, 5,8 milhões de usuários. Por outro lado, os Correios estão presentes em quase todas as localidades do Brasil e são muito mais “democráticos e acessíveis”.

Em alguns casos, a competição entre a Internet e as cartas começa dentro de casa. A secretária Camila Silveira passa horas na frente do computador, no trabalho e em casa, mas não usa a máquina para entrar em contato com os amigos de outra cidade. “Prefiro escrever porque acho os e-mails muito impessoais, frios”, explica. A estudante universitária Renata Oliveira tem a mesma reclamação do correio virtual. “Os e-mails não passam a mesma sensação das cartas, que têm a letra da pessoa, é uma coisa na qual ela tocou”, diz. A estudante conta que sempre gostou de escrever cartas e tinha o costume de se corresponder com um tio que morava na Alemanha. Quando o, hoje ex-namorado, se mudou para outra cidade, ela também preferiu as cartas aos e-mails para manter o contato. “Gostava de escrever e receber as cartas dele, os e-mails, às vezes nem abria”, revela. Atualmente, ela não mantém correspondência constante com ninguém, mas continua fã do envelope e do selo e garante que se precisar entrar em contato com alguém de outra localidade vai fazê-lo por carta.

Letra ruim

“As pessoas começaram a ficar com a letra feia porque pararam de escrever cartas”, afirma a dona de casa Maria Clara M. dos Santos. Para ela, o uso do computador está fazendo que muita gente perca a capacidade de se fazer entender pela escrita. Maria escreve cartas desde a adolescência. “Escrevia para os parentes, colegas de escola, até para embaixadas e consulados já escrevi”. conta. Hoje ela mantém contato pelo correio com algumas amigas que moram no norte e no nordeste do País. “Ver o carteiro chegar com uma carta na mão, como diz a música, é uma emoção que não tem igual... A carta traz o jeito, o cheiro, o carinho da pessoa junto com ela, nenhum computador faz isso”, compara. E a demora para receber a resposta? “Isso é o que torna a troca das cartas mais interessante, a expectativa da resposta”, afirma Maria. “O segredo para evitar a ansiedade exagerada é escrever para muitas pessoas, assim sempre vai haver alguém respondendo”, ensina.

“Eu preciso dos Correios”

Para a professora aposentada Ercy Maria Marques de Faria o correio é vital. Trovadora e delegada da União Brasileira de Trovadores em Bauru, ela recebe e envia dezenas de cartas durante a semana. “Mantenho contato com trovadores de todo País”, diz. Ela também faz circular por vários países, entre eles o Japão, Portugal e Espanha, o que chama de “jornalzinho” de trovas, um boletim chamado Sem Limites com obras suas e de seus companheiros. “Eu preciso dos Correios”, afirma. Na opinião da trovadora as cartas “falam mais” do que qualquer mensagem de computador. “A carta leva alguma coisa de você para outra pessoa, através dela é possível ler as entrelinhas e saber muito mais do que apenas aquilo que está escrito”, acredita Ercy, que escreve cartas desde 1984 e é taxativa ao afirmar que não usaria o computador para se corresponder se tivesse um. “As cartas são mais simpáticas”, justifica.

Carinho em mãos

Na opinião de Valmari Aranha, psicóloga clínica do Hospital das Clínicas de São Paulo, publicada no Jornal Da Tarde este mês, o século passado foi marcado pela corrida da não individualidade e pelo descartável, e o computador e a Internet contribuíram muito para a massificação e a impessoalidade dos valores. Segundo a psicóloga, as pessoas foram rápidas demais com a modernidade e a tecnologia, com isso perderam um pouco a capacidade de afeto, de amar. Hoje, afirma Aranha, existe uma corrida de resgate da subjetividade e as cartas são um exemplo disso porque ao contrário da Internet, as cartas têm um “rosto” que se desenha por meio da letra.

A letra é um aspecto fundamental para as pessoas que preferem as cartas, para a psicóloga Luciana Biem Neuber. É através dela que o destinatário vai poder identificar se a carta foi realmente escrita por aquela pessoa, ou seja, é um documento autêntico. “A certeza de autenticidade, que não se tem num e-mail, por exemplo, é uma das razões pelas quais as pessoas gostam das cartas”, afirma a psicóloga. Para ela, a Internet, embora seja prática, ainda deixa algumas pessoas inseguras quanto à autenticidade das informações, pelo fato de não ser tão segura, “Se some alguma mensagem, como a pessoa vai saber para onde foi?”, questiona exemplificando. “Por isso é difícil que alguém trate de assuntos muito íntimos e confidenciais na Internet. Por carta é mais seguro porque se o remetente não for encontrado, ela volta”, diz.

Outra razão para escolher a troca de correspondência tradicional é o fator humano. A carta, segundo Luciana Biem, tem um aspecto mais humano porque demonstra que alguém teve o trabalho de escrever, o que é, de certa forma, um sinal de afeição. “A carta manuscrita é embuida de carinho, é como se a pessoa estivesse recebendo um pouco do seu autor quando a abre”, explica. Além disso, ainda existe a estética da carta, o seu papel, a maneira como foi colocado o parágrafo, etc, que pode fornecer outras informações a quem recebe.




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