Bauru e grande região - Sexta-feira, 04 de outubro de 2024
máx. 31° / min. 12°
11/02/01 00:00 -

Carta a um amigo que também gosta de música

Carta a um amigo que também gosta de música

Hélcio Pupo Ribeiro (*)
Caro amigo Romeu Yangue.

Não sei como começar. Cumprimento primeiro a nora ou o sogro? Antes de fazê-lo a ambos, iniciarei louvando a pianista e sua música.

Nina Limânova deu-nos uma soberba aula de como tocar piano. Admira que uma jovem de pouco mais de 25 anos tenha atingido tamanho grau de virtuosidade musical. Nina tem ótima escola, um "toucher" primoroso, impecável técnica, é soberba. Tem talento, sim, e que talento! Em vários momentos me perguntei: será que ela passou 25 anos estudando? Talvez exagere mas, seguramente uns 18 ou 20 anos, sim! É dotada de um poderoso aparelho dígito-cussor, que lhe autoriza superar as incríveis dificuldades técnico-interpretativas do instrumento, com surpreendente facilidade, dosando criteriosamente os graus de expressão, dócil, perolada ou vibrante e arrebatador, quando a partitura assim o exige. Sua pedalização eficiente e oportuna é sempre adequada. Admirável o senso interpretativo. Tem compreensão certa para cada momento estético, percorrendo com louvável clareza as intensidades sonoras, superando tranqüilamente as indicações dinâmicas, desde o fortíssimo ao pianíssimo.

Entretanto, na modesta análise que lhe prometi, teria que estabelecer uma graduação de valor para o julgamento, por exemplo, uma escala de 1 a 10.

Iniciando pelo imortal Bach (Prelúdio em Fá menor), lamentavelmente sem a referência de catálogo que indica a fonte cronológica, imprescindível. Bach escreveu cerca de 50 prelúdios em Fá menor. Em assim sendo, qual deles? Esse detalhe é bastante útil, especialmente ao estudioso do grande mestre. Bach mereceu nota 7, dentro da escala convencionada. Para Mozart (Sonata K.311), nota 8. Disse alguém que Mozart, aparentemente simples e fácil, é ao contrário, dificílimo. Sua singeleza é enganadora como uma armadilha. Ou se é simples de verdade, ou não. E como é difícil ser simples! O salzburguês genial engana com suas mudanças, ora infantil e ingênuo, ora malicioso ou galhofeiro. A versão de Nina foi satisfatória, com pequena carência na dinâmica allegro-andante-presto.

Ponto alto do recital, sem dúvida a melhor coisa da noite, o Scherzo n.º 2, de Chopin, fluiu irrepreensível, vivo, exuberante, pleno de beleza no discurso romântico das suas frases melódicas com nuances esplêndidas de intensidade sonora o que é inerente aos scherzos, especialmente os do polonês poeta. Nota 10.

Ao Schubert, um dos compositores de nossa preferência - pena que não tivesse tocado toda a sonata! - nota 07. Chopin detestava os grandes auditórios. O público numeroso o atemorizava e confrangia. Um inveterado e introspectivo romântico! Pois o baixinho vienense era um tímido intimista, um simplório constantemente apavorado. Gostava de uma cerveja e permanentemente estava "alto". seu apelido já o diz: Schwamerl (esponja). Talvez o insucesso diante dos públicos da cidade (em vida não teve o prazer de ouvir encômios) o tornasse um gato escaldado. Daí, talvez, o receio de atacar um allegro brilhante com a fúria devida. Em compensação, que andantes e que adagios pungentes e doridos! Acho Schubert o mais triste de todos os músicos. Repare-se nele, só falta morrer! Mas que beleza de clima nostálgico, parece vir do mais profundo da alma sofrida. Para compreendermos plenamente a música schubertiana, precisamos saber que em seu túmulo há esta lápide: "Aqui jaz não somente um rico tesouro, mas esperanças ainda mais belas". A primeira vez que ouvi Schubert, exatamente o improviso Op. 90, n.º 3, foi aqui em Bauru, há muitos anos, quando apareceu por estas bandas um tal de Henri Jolles, francês de estirpe das melhores. Que artista! Meu caro Romeu, acredite-me, eu era ainda jovem, mas chorei.

Impressionante a Sonata n.º 3, do rebelde Prokofiev, que retirou-se da Rússia quando o regime moscovita foi imposto. Mas depois de alguns anos retornou, submetendo-se ao regime novo e fazendo música para o povo. Arroubo e valentia percussiva, dissonância e síncopes inesperadas, saltos diabólicos dentro da linguagem moderna que lhe é familiar, arrogantemente superior. Como diria um crítico paulistano, meu amigo: "sem reproches", nota 10.

Por outro lado, nota zero para o salão. Onde se viu sanitários dando para o público? Horrível! Pobre Bauru, até quando nossos políticos abusarão do "Quousque tanden Catilina, abutere patentia nostra"!!

Ainda bem que a brilhante Lina Limânova superou tudo isto, envolvendo-nos em atmosfera de êxtase e empolgação. Valeu!

Finalizando, desejamos, eu e Irma, a todos vocês - Isolina, Ramon, Ricardo e Nina, um ano novo muito próspero e feliz, cheio de paz, alegria e saúde, saúde, saúde.

Abraços do amigo certo.

(*)Especial para o JC Cultura





publicidade
As Mais Compartilhadas no Face
(SF) © Copyright 2024 Jornal da Cidade - Todos os direitos reservados - Atendimento (14) 3104-3104 - Bauru/SP