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Pescador escreve sobre canoeiros do Araguaia

Pescador escreve sobre canoeiros do Araguaia

Redação
Pescar é uma terapia indispensável. São momentos passados entre amigos, presenciando aventuras, vitórias, brigas memoráveis com peixes, que desafiam a coragem do pescador. Nem sempre a viagem é recheada de alegrias. Há também acasos que levam à reflexão, maior atenção e, às vezes, trazem até tristezas. Nesse mundo de viagens e pescarias, o dentista e pescador Felisdeu Leão se aventurou. Em anos de rio Araguaia, Leão presenciou muita coisa.

O que seus olhos puderam ver, há algum tempo está sendo transformado em livro, que possivelmente irá emocionar os mais sensíveis e atrair para o rio os apaixonados pela pesca. Conhecedor do pirarucu, um dos maiores peixes brasileiros, que já esteve ameaçado de extinção, Leão buscou seu rastro em muitas viagens pelo rio Araguaia, acompanhado de amigos pescadores e piloteiros. Cada caso tem se transformado em mais um capítulo do livro, que cria vida nas mãos do dentista.

Misturando uma pitada de ficção e um texto excelente, as aventuras narradas por Leão trazem suspense e muita emoção. Emoção de homem, pescador, aventureiro. Confira um dos capítulos do livro, que deverá emocionar muita gente.

Os canoeiros do Araguaia

Inúmeras vezes percorremos o majestoso rio Araguaia, onde fizemos memoráveis pescarias, sempre à caça dos fabulosos pirarucus. Fatos curiosos aconteceram, e um, em particular, nos marcou por muitos anos:

Adversidade de amigo distante

Nem tudo aqui descrito constitui motivo de lazer ou de alegria. Relatamos, pesarosamente, infortúnios de pessoa que nos é cara, marcada por estigma de doença incapacitante, que deixou em seu físico irreparáveis sequelas, causando danos materiais à família e consternação a amigos. Falamos de “João Preto”. Caiçara das barracas do Araguaia, conhecedor profundo das matas, varjões, lagos, corrichos e guapés, ao longo daquelas águas, desde a Barra do Garça até São Felix, no Mato Grosso.

Tantas e tantas vezes percorreu, solitariamente, enormes distâncias em sua ágil e estreita piroga, negaciando as temidas pintadas ou a procura de cardumes das espécies mais preferidas pelos mariscadores da região. À proa de tão modesta embarcação, descia, silenciosamente como sombra, perscrutando bulhas imperceptíveis a sentidos menos adaptados àquelas situações de sobrevivência. Seus aguçados olhos detectavam com precisão, lugares onde eram encontrados dóceis surubins-chicote até as agressivas e descomunais piraíbas.

A silhueta de seu robusto físico, destacava-se no espalhado das águas encrespadas pela suave brisa do entardecer. Habitava singela palhoça às margens do Araguaia, juntamente com a esposa e três filhos menores. Seu lar, embora feliz, não era farto. Dispunha apenas do suficiente e necessário à subsistência de sua família e receber amigos que lá aportavam, após jornadas cansativas, remando naquelas bandas sem fim. A cor negra de sua pele contrastava-se com a brancura de seus dentes bem alinhados e sempre à mostra em largos sorrisos. De espírito manso e alegre, cativava a todos que o conheciam. Difícil imaginar houvesse, em seu físico avantajado, alma tão inocente e cheia de candura. Era conhecido, carinhosamente, como “João Preto”. Tornou-se também nosso amigo e com ele convivemos mais de 15 anos, em sucessivas pescarias ao seu lado. Ensinou-nos os macetes e negaças imprescindíveis à captura dos fabulosos pirarucus, quando sua pesca ainda não era proibida.

A despeito da estima que dedicamos a “João Preto”, quis o destino fôssemos nós a perceber moléstia insidiosa que já carcomia seu corpo, então atlético e cheio de vida.

Sua desdita começou quando ele desceu do jipe para abrir a porteira para nós, numa das pescarias no rio Cristalino, ambiente selvagem e ameaçador. Vimos assustados enorme estrepe atravessado no seu pé esquerdo, que sangrava abundantemente. Embora o ferimento fosse de certa gravidade, ainda assim, ele nada sentia. O médico Eduardo, filho do nosso amigo e ex-Prefeito de Mineiros do Tietê, desceu rápido para prestar-lhe os primeiros socorros. Sem anestesia, a farpa da aroeira, suja e infecta, foi retirada, enquanto “João Preto” apenas sorria, não demonstrando sofrimento algum. Havia, isto sim, certo nervosismo estampado em sua face lívida, talvez por ver tanto sangue fluindo rapidamente.

No acampamento, o jovem doutor examinou-o mais detalhadamente, tocando a ferida com ponta aguçada de alfinete e com vidro de água quente. João Preto nada sentia. O resultado foi arrasador: lepra... João Preto quedou-se por alguns instantes, procurando disfarçar o choque recebido, intenso como sentença de morte. De seus olhos brotaram algumas gotas de lágrima e ele as enxugava com a palma da mão calejada... Refeito da comoção, confessou já estar desconfiado, há muito, devido a casos dessa doença em pessoas de sua família. Acostumara-se a conviver com a dúvida. Torturava-lhe admitir afastar-se da mulher e dos filhos, caso um tratamento demorado fosse necessário. Tal ocorresse, sua família ficaria, desamparada em lugares ermos e sem recursos.

Apesar da maneira branda e psicológica que o médico esclareceu sobre recursos avançados da medicina no combate e controle da doença, o mundo pareceu ruir aos pés de nosso infortunado amigo, “João Preto” preferia morrer a viver confinado, fugindo de amigos e afastar-se da família. Cabisbaixo, apanhou sua trouxa de roupa e desapareceu em direção da sua casa. Receávamos que ele cometesse algum desatino, perturbado que ficou naquele momento.

Um ano depois voltamos ao Araguaia. A primeira preocupação de nossa parte era saber de “João Preto”. O diagnóstico feito pelo médico fora confirmado: Hanseníase já no estado virshoviana. “João Preto” ficou internado por algum tempo, em Sanatório de Goiânia, de onde fugira logo depois. A notícia de sua moléstia correu célere no Vale do Araguaia. “João Preto” passou a viver confinado em pequena ilha, local de difícil acesso. Baixios e tranqueiras formavam verdadeiros obstáculos à sua moradia, ou melhor dizendo, ao seu esconderijo. Fomos à sua casa várias vezes, sem avistá-lo uma única sequer. À saída, ele nos espreitava furtivamente, por entre frestas de seu rústico barraco. Era constrangedor vê-lo assim, nos evitando, sabendo de sua grande estima por nós.

Infeliz desterrado

Seus amigos o abandonaram. Falavam com ele só o necessário e à distância. Receavam que o vento fosse capaz de contaminar-lhes os corpos em presença de “João Preto”. A palavra lepra, soava-lhes tão repelente que nunca a mencionava com clareza. Referiam-se a ela, timidamente, como “doença do sangue”.

Pobres ignorantes

Certa noite, luar meio ofuscado, ouvimos algo movimentando-se contra as águas mais ligeiras, defronte ao nosso acampamento. Fina silhueta postava-se, meio arcada, sobre pequena embarcação. Era “João Preto”. Corremos ao seu encontro e chamamos-lhe pelo nome. Nenhuma resposta. O vulto guinou-se rapidamente de volta, a favor da correnteza, na ânsia de obstar contato com ele. De “voadeira” motorizada foi fácil alcançá-lo. Jungimos nosso barco ao dele, descemos à deriva, enquanto tentávamos conversar, “João Preto” tratou-nos com indiferença e aparente mau-humor. Compreendíamos aquela difícil representação. No íntimo ele se alegrava em nos rever. O complexo da doença era mais forte do que sua vontade. Daí o fingido repúdio à nossa presença. Depois de muita insistência, concordou em ser rebocado até as barracas, desviando-se, sempre, das claridades dos lampiões a gás. Não queria deixar à mostra o estado lastimável de seu corpo, já exaurido pela doença. Conversamos na penumbra longo tempo. Contou-nos das dificuldades de vida, depois que seu estado físico tornou-se conhecido por aquela gente simples e temerosa. Ouvíamos, enternecidos, sua revolta contra Deus e contra tudo. A rejeição a sua pessoa era tanta que os próprios donos de “butecos” evitavam a lhe vender, receosos seu dinheiro contaminassem-lhes a saúde.

“João Preto” não mais pescava. Ninguém comprava os produtos de seu trabalho. Tangido pela circunstância, dedicou-se a caçar onças em lugares ínvios e perigosos. As peles desses felinos nem sempre rendiam o suficiente para o sustento de sua família.

Ouvíamos amargurados

Dado momento, um de nossos companheiros aproximou-se, com um ofuscante lampião. “João Preto” ficou apavorado ante a luz devastadora. Não desejava víssemos em seu corpo as sequelas deformantes que a todo custo procurava esconder. Notamos, com tristeza, suas feições já modificadas pela doença. Sobrancelhas por demais ralas, davam-lhe o conhecido aspecto leonino, característico da lepra em estado avançado.

Seus olhos, outrora cheio de vida, não mais brilhavam. Trapos encardidos e anodoados envolviam-lhes as mãos e os pés. Deixando a descoberto apenas o que restava de dedos mutilados. João Preto chorara. Não mais se importava em esconder as lesões que tanto repugnavam as pessoas que as viam. Estava obstinado, à mercê dos estigmas que modificaram-lhe a vida... Subitamente, como se estivesse acordando de um pesadelo, virou rápido a proa de seu barquinho, em direção à correnteza, e lá se foi. Não mais o vimos.




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